APROFUNDANDO MAIS NO DILEMA DA TARIFA ZERO
Miguel Angelo Pricinote , Subsecretário de Políticas para Cidades e Transporte no Governo de Goiás | Especialista em Transportes Urbanos. 20 de janeiro de 2024
Antes de falarmos diretamente sobre a Tarifa Zero gostaria de começar o artigo refletindo quais as funções da tarifa e como ela é importante para no Sistema Elétrico e também no Sistema de Abastecimento de Água.
Neste sentido, a tarifa é o valor que o consumidor paga pelo uso da energia elétrica ou da água. Ela serve para remunerar os serviços de geração, transporte e distribuição desses recursos, bem como os encargos setoriais. A tarifa também visa manter o equilíbrio econômico-financeiro entre os prestadores de serviços e os consumidores.
A tarifa pode variar de acordo com as condições de oferta e demanda de energia e água. Por exemplo, quando há escassez de chuvas, as usinas hidrelétricas produzem menos energia e as distribuidoras precisam comprar energia mais cara de outras fontes, como as térmicas. Isso aumenta o custo da energia e, consequentemente, a tarifa.
Para sinalizar ao consumidor o custo da energia em cada período, existe o sistema de bandeiras tarifárias, que pode ser verde, amarela ou vermelha. A bandeira verde indica que as condições de geração são favoráveis e não há cobrança extra na tarifa. A bandeira amarela indica que as condições são menos favoráveis e há uma cobrança extra de R$ 1,50 a cada 100 kWh consumidos. A bandeira vermelha indica que as condições são críticas e há uma cobrança extra de R$ 4,00 (patamar 1) ou R$ 6,00 (patamar 2) a cada 100 kWh consumidos.
A tarifa também pode variar de acordo com o horário de consumo de energia, sendo mais barata nos horários de menor demanda (fora de ponta) e mais cara nos horários de maior demanda (ponta). Essa diferenciação visa incentivar o consumidor a usar a energia de forma mais racional e eficiente, evitando desperdícios e sobrecargas no sistema elétrico.
A tarifa de água também pode ser diferenciada de acordo com o consumo, sendo mais cara para quem consome mais e mais barata para quem consome menos. Essa medida visa estimular o uso consciente da água e evitar o racionamento ou a escassez desse recurso.
Qual o papel da Tarifa no Transporte Público
A tarifa do transporte público é o valor que o usuário paga para utilizar os modais de ônibus, metrô, trem, etc. Ela serve para cobrir os custos de operação e manutenção desses sistemas, bem como os investimentos necessários para a sua expansão e melhoria.
A tarifa do transporte público pode variar de acordo com as condições de oferta e demanda dos modais, assim como a tarifa de energia e água. Por exemplo, quando há aumento do preço dos combustíveis, dos salários dos motoristas, dos impostos, etc., o custo do transporte por ônibus aumenta e, consequentemente, a tarifa também. Quando há diminuição da demanda por transporte público, seja por causa da pandemia, da crise econômica, da concorrência com outros modos, etc., a receita tarifária diminui e, para manter o equilíbrio financeiro do sistema, a tarifa tende a aumentar.
Para sinalizar ao usuário o custo do transporte público em cada período, existe o sistema de tarifas diferenciadas, que pode ser por horário, por modal, por distância, por renda, etc. A tarifa diferenciada visa incentivar o usuário a usar o transporte público de forma mais racional e eficiente, evitando congestionamentos, poluição, acidentes, etc. Por exemplo, a tarifa pode ser mais barata nos horários de menor demanda (fora de pico) e mais cara nos horários de maior demanda (pico). A tarifa pode ser mais barata para os modais mais sustentáveis, como o metrô e o trem, e mais cara para os modais mais poluentes, como o ônibus e o carro. A tarifa pode ser mais barata para os usuários que percorrem distâncias menores e mais cara para os que percorrem distâncias maiores. A tarifa pode ser mais barata para os usuários de baixa renda e mais cara para os de alta renda.
Os desequilíbrios da Tarifa Zero
A tarifa zero no transporte público pode causar um desequilíbrio em vários aspectos, como:
A tarifa zero não significa a ausência de custos, mas sim a mudança na forma de cobrança, que deixa de ser feita no momento do embarque e passa a ser feita por outros meios, como impostos, taxas ou subsídios. Isso pode gerar um aumento da carga tributária, da inflação, do endividamento público ou da renúncia fiscal, afetando o orçamento do Estado e a capacidade de investimento em outras áreas.
A tarifa zero pode estimular o aumento da demanda por transporte público, sem que haja uma melhoria da oferta e da infraestrutura. Isso pode resultar em superlotação, desconforto, demora, poluição e acidentes. A tarifa zero também pode agravar a segregação espacial das cidades, ao concentrar as atividades e os serviços nas áreas centrais, em detrimento das periferias, que ficam mais isoladas e carentes.
E os Riscos Fiscais?
Uma forma de mitigar os riscos fiscais da tarifa zero no transporte é buscar outras fontes de financiamento que não dependam exclusivamente dos impostos pagos pelos contribuintes. Algumas alternativas possíveis são:
Criação de Parcerias público-privadas, que envolvem a participação de empresas privadas na gestão e no investimento do transporte público, em troca de benefícios como isenções fiscais, concessões de exploração, etc.
Aumento nos investimentos em eficiência operacional, que visam reduzir os custos e aumentar a qualidade do transporte público, por meio de medidas como a renovação da frota, a otimização das rotas, a integração dos modais, a adoção de tecnologias inteligentes, etc.
Diversificação de fontes de receita, que consiste em criar novas formas de arrecadação para o transporte público, além da tarifa, como a publicidade, a venda de serviços agregados, a cobrança de estacionamentos, a taxação de veículos particulares, etc.
Outra forma de mitigar os riscos fiscais da tarifa zero no transporte é adotar tarifas flexíveis, que variam de acordo com a renda, a distância, o horário, o modal, etc. Essa estratégia permite manter uma fonte de receita para o transporte público, ao mesmo tempo que oferece benefícios para os usuários que mais precisam ou que usam os modais mais sustentáveis.
Alguns casos de tarifa zero que tiveram que retroceder
Em 2012, a cidade de Cidade Tiradentes, na zona leste de São Paulo, adotou a tarifa zero nos ônibus municipais, como parte de um projeto piloto da prefeitura. A medida beneficiou cerca de 250 mil moradores, mas teve um custo anual de R$ 36 milhões, que era bancado pelo Fundo Municipal de Desenvolvimento Social. Em 2022, após 10 anos de vigência, a tarifa zero foi extinta, sob a justificativa de que o fundo não tinha mais recursos para manter o subsídio.
Em 2019, a cidade de Volta Redonda, no sul do Rio de Janeiro, adotou a tarifa zero nos ônibus municipais, como parte de um acordo entre a prefeitura e as empresas de transporte. A medida beneficiou cerca de 270 mil habitantes, mas teve um custo mensal de R$ 6 milhões, que era dividido entre o município e as concessionárias. Em 2020, após um ano de vigência, a tarifa zero foi suspensa, sob a alegação de que a pandemia reduziu a arrecadação municipal e inviabilizou o pagamento do subsídio.
Os possíveis impactos da Tarifa Zero
A tarifa zero no transporte público pode afetar o meio ambiente de forma positiva ou negativa, dependendo de uma série de fatores. De forma positiva, a tarifa zero pode incentivar o uso dos modais coletivos e sustentáveis, reduzir o tráfego e a poluição, e melhorar a saúde e a qualidade de vida da população. De forma negativa, a tarifa zero pode estimular o aumento da demanda por transporte público, sem que haja uma melhoria da oferta e da infraestrutura, resultando em superlotação, desconforto, demora, poluição e acidentes. A tarifa zero também pode gerar um desequilíbrio fiscal, ao exigir mais recursos públicos para subsidiar o sistema, sem garantir uma fonte de financiamento alternativa ou uma gestão eficiente.
Mas como podemos avaliar estes impactos? Essa é uma pergunta difícil de responder, pois o custo estimado da tarifa zero no Brasil depende de vários fatores, como o tamanho e a complexidade do sistema de transporte público, a demanda e o perfil dos usuários, a fonte e a forma de financiamento, a gestão e a eficiência operacional, entre outros. Além disso, não há uma metodologia única ou consensual para fazer a memória de cálculo desse custo, que envolve dados técnicos, econômicos, sociais e ambientais.
No entanto, existem alguns estudos e experiências que podem servir de referência para estimar o custo da tarifa zero no Brasil, em diferentes cenários e escalas. Por exemplo:
Em 2012, o então secretário municipal de Transportes de São Paulo, Lucio Gregori, estimou que o custo da tarifa zero na capital paulista seria de cerca de R$ 6 bilhões por ano, o que representaria 1,5% do orçamento municipal. Ele propôs que esse custo fosse financiado por meio de um imposto sobre o uso do espaço urbano, que incidiria sobre os veículos particulares, os estacionamentos e os pedágios urbanos.
Em 2019, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) estimou que o custo da tarifa zero no Brasil seria de cerca de R$ 86 bilhões por ano, o que representaria 1,2% do Produto Interno Bruto (PIB). Ele propôs que esse custo fosse financiado por meio de uma reforma tributária, que aumentaria a progressividade dos impostos sobre a renda e o patrimônio.
Em 2020, a Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU) estimou que o custo da tarifa zero no Brasil seria de cerca de R$ 100 bilhões por ano, o que representaria 1,4% do PIB. Ela propôs que esse custo fosse financiado por meio de uma contribuição sobre movimentação financeira, que incidiria sobre as transações bancárias e financeiras.
Só em titulo de comparação segue as porcentagens do PIB do Brasil com saúde, educação e segurança em 2019 foram as seguintes:
· Saúde: 9,6% do PIB, sendo 3,8% do governo e 5,8% das famílias e instituições.
· Educação: 6,2% do PIB, sendo 4,7% do governo e 1,5% das famílias e instituições.
· Segurança: 1,4% do PIB, sendo 1,3% do governo e 0,1% das famílias e instituições.
· Mobilidade urbana: R$ 483,3 bilhões anuais em 2019, o que representa 6,8% do Produto Interno Bruto (PIB). Nesse valor estão incluídos os gastos individuais dos usuários de transporte ou empregadores, os recursos do poder público para manter o sistema funcionando e os impactos sociais da movimentação das pessoas, como acidentes, poluição, congestionamentos, etc.
Os possíveis efeitos negativos da tarifa zero no transporte público.
Sobre a relação entre a tarifa zero e o aumento do espraiamento urbano podemos observar que a política de gratuidade no transporte pode ter um efeito indesejado sobre a expansão desordenada das cidades, ao estimular as pessoas a morarem mais longe dos centros urbanos, onde o custo de vida é menor, mas a infraestrutura e os serviços são mais precários.
A tarifa zero pode agravar a segregação espacial das cidades, ao concentrar as atividades e os serviços nas áreas centrais, em detrimento das periferias, que ficam mais isoladas e carentes.
No entanto, devemos afirmar que a tarifa zero não é a única causa do espraiamento urbano, que depende também de outros fatores, como a política habitacional, o planejamento territorial, a regulação fundiária, etc.
Sobre a relação entre a tarifa zero e o investimento na melhoria da infraestrutura da mobilidade urbana, a tarifa zero pode comprometer a qualidade e a eficiência do transporte público, ao reduzir a receita tarifária e aumentar os custos operacionais, sem garantir uma fonte de financiamento alternativa ou uma gestão eficiente.
A tarifa zero pode desestimular o investimento em outros modais de transporte, como o metrô, o trem, a bicicleta, etc., que são mais sustentáveis e integrados, mas que exigem mais recursos e planejamento.
No entanto a tarifa zero não é incompatível com a melhoria da infraestrutura da mobilidade urbana, desde que haja uma política pública integrada, que considere as necessidades e as demandas da população, e que busque outras fontes de financiamento, como impostos, taxas, parcerias, etc.
Referências
- 8 dados mostram o impacto da mobilidade urbana nas nossas vidas. https://mobilidade.estadao.com.br/mobilidade-para-que/dia-a-dia/8-dados-mostram-o-impacto-da-mobilidade-urbana-nas-nossas-vidas/.
- A política de tarifa zero no transporte público: um olhar crítico sobre .... https://revistaautobus.com.br/a-politica-de-tarifa-zero-no-transporte-publico-um-olhar-critico-sobre-seus-impactos-socioeconomicos/.
- A Tarifa zero é possível no Brasil? - Summit Mobilidade. https://summitmobilidade.estadao.com.br/guia-do-transporte-urbano/a-tarifa-zero-e-possivel-no-brasil/.
- A tarifa zero é um verdadeiro veneno disfarçado de remédio. https://revistaautobus.com.br/a-tarifa-zero-e-um-verdadeiro-veneno-disfarcado-de-remedio/.
- Câmara Municipal de SP aprova relatório sobre implantação da tarifa .... https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2023/12/07/camara-municipal-de-sp-aprova-relatorio-sobre-implantacao-da-tarifa-zero-nos-onibus-da-capital.ghtml.
- Como funciona a Tarifa Zero no transporte público - Summit Mobilidade. https://summitmobilidade.estadao.com.br/tarifa-zero-qual-sua-viabilidade/.
- Debatedores reivindicam aprovação de PEC que cria tarifa zero no .... https://www.camara.leg.br/noticias/972055-debatedores-reivindicam-aprovacao-de-pec-que-cria-tarifa-zero-no-transporte-publico/.
- Demanda Contratada: O que é, como encontrar e como funciona? - ENERGÊS. https://energes.com.br/demanda-contratada/
- Despesas com saúde no Brasil (R$ 914,85 bilhões – 9,23% do PIB) - Anahp. https://www.anahp.com.br/wp-content/uploads/2023/05/Painel-Anahp_2023.pdf.
- Despesas com saúde em 2019 representam 9,6% do PIB. https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/33484-despesas-com-saude-em-2019-representam-9-6-do-pib.
- Despesa das famílias com saúde cresce mais que a do governo ... - G1. https://g1.globo.com/economia/noticia/2022/04/14/despesa-das-familias-com-saude-cresce-mais-que-a-do-governo-mostra-ibge.ghtml.
- EFEITOS DA VARIAÇÃO DA TARIFA E DA RENDA DA POPULAÇÃO SOBRE A DEMANDA DE. https://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/1282/1/TD_1595.pdf.
- Entenda por que Tarifa Zero será tema central das eleições 2024. https://www.intercept.com.br/2024/01/02/tarifa-zero-sera-tema-central-nas-eleicoes-municipais-de-2024/.
- IBGE: Gasto estatal do Brasil com saúde é um dos mais baixos do mundo. https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2022/04/14/gasto-estatal-do-brasil-com-saude-e-um-dos-mais-baixos-do-mundo-afirma-ibge.htm.
- IMPACTOS DO VALOR DAS TARIFAS NA DEMANDA POR TRANSPORTE PÚBLICO. https://www.researchgate.net/profile/Gabriel-Stumpf/publication/337717777_IMPACTOS_DO_VALOR_DAS_TARIFAS_NA_DEMANDA_POR_TRANSPORTE_PUBLICO/links/5de69137a6fdcc2837033f1e/IMPACTOS-DO-VALOR-DAS-TARIFAS-NA-DEMANDA-POR-TRANSPORTE-PUBLICO.pdf.
- Por que a tarifa zero não resolve todos os problemas? - JC. https://jc.ne10.uol.com.br/colunas/mobilidade/2021/11/13625580-por-que-a-tarifa-zero-nao-resolve-todos-os-problemas.html.
- Primeira experiência de Tarifa Zero começou há mais de 30 anos no Brasil. https://www.labcidade.fau.usp.br/primeira-experiencia-de-tarifa-zero-comecou-ha-mais-de-30-anos-no-brasil/.
- Tarifas — Agência Nacional de Energia Elétrica. https://www.gov.br/aneel/pt-br/assuntos/tarifas.
- Tarifa de energia elétrica no Brasil: entenda como ela é calculada. https://ecomenergia.com.br/blog/tarifas-de-energia-eletrica/.
- Tarifa zero: as lições das 67 cidades do Brasil com ônibus de graça. https://www.bbc.com/portuguese/articles/cy65e4qnjjpo.
- Tarifa zero em ônibus municipais passa a valer neste domingo na ... - G1. https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2023/12/17/tarifa-zero-em-onibus-municipais-passa-a-valer-neste-domingo-na-cidade-de-sp.ghtml.
- Tarifa zero de ônibus em SP começa com passageiros divididos ... - G1. https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2023/12/17/tarifa-zero-de-onibus-em-sp-comeca-com-passageiros-divididos-entre-criticas-e-elogios-prefeito-preve-11-milhao-de-novos-usuarios.ghtml.
- Tarifa Zero, mais emprego e menos poluição - O GLOBO. https://oglobo.globo.com/opiniao/artigos/coluna/2023/10/tarifa-zero-mais-emprego-e-menos-poluicao.ghtml.
- Tarifa zero: um sonho possível ou um pesadelo real? Uma análise .... https://revistaautobus.com.br/tarifa-zero-um-sonho-possivel-ou-um-pesadelo-real-uma-analise-sociologica-economica-e-espacial/.
- TARIFA ZERO: política de inclusão social ou risco à ... - JC. https://jc.ne10.uol.com.br/colunas/mobilidade/2023/12/15644232-tarifa-zero-politica-de-inclusao-social-ou-risco-a-degradacao-do-transporte-publico-leia-artigo.html.
- Transporte público no Brasil precisa deixar de depender da tarifa .... https://www.estadao.com.br/brasil/transporte-publico-no-brasil-precisa-deixar-de-depender-da-tarifa-afirmam-especialistas/.