Política de Transporte x Política com Transporte


Miguel Angelo Pricinote , Subsecretário de Políticas para Cidades e Transporte no Governo de Goiás | Especialista em Transportes Urbanos. Publicado em 13 de fevereiro de 2022

No Brasil, a cada dois anos, vivemos um período bastante importante da nossa democracia. São as eleições. Como você bem sabe, nessa época aparecem dezenas de candidatos querendo os nossos votos.

É um vale-tudo tão grande que esquecemos até esqueça que a disputa eleitoral tem regras, muitas regras, e que todas elas precisam ser observadas. E muitos mandatários resolvem abandonar os cargos que foram eleitos para buscar voos mais altos, traindo assim os centenas de milhares de eleitores que confiaram nele. São vereadores saindo para deputados, prefeitos para governadores, senadores para governadores e governadores para presidente.

Infelizmente estamos vivendo está situação na Região Metropolitana de Goiânia onde o prefeito de Aparecida de Goiânia se posicionando contra a Lei Complementar 169 que reestruturação o transporte da RMTC. A base da estrutura do projeto consiste em: Fortalecer e consolidar o modelo metropolitano de transporte público; Reestruturar a governança da RMTC; Adequar a política tarifária; Reestruturar a Câmara Deliberativa de Transportes Coletivos (CDTC); Consolidar a CMTC como uma Companhia de abrangência metropolitana; Redefinir o papel institucional da AGR para gerar maior transparência; E tornar metropolitana a Concessionária Metrobus.

Sem participar das discussões e sem apresentar qualquer contraproposta ao projeto que moderniza e qualifica o transporte público, a Prefeitura de Aparecida de Goiânia decidiu ir à justiça para não financiar o modelo que, entre outros avanços, vai reduzir o custo para os cidadãos. A reformulação da Rede Metropolitana de Transporte Coletivo (RMTC) impõe que Aparecida de Goiânia subsidie 9,4% dos custos. A cidade administrada por Gustavo Mendanha (sem partido), no entanto, alega que não concorda com o índice e que não tem dinheiro suficiente, mesmo tendo a segunda menor participação entre os municípios que integram o rateio, a frente apenas de Senador Canedo, que vai custear 8,2%. O Estado de Goiás e a Prefeitura de Goiânia vão bancar, cada um, 41,2% dos subsídios para meia-tarifa, redução do preço da passagem para os usuários que percorrerem pequenas distâncias, entre outros avanços.

Mas infelizmente prefeitura de Aparecida se recusa a financiar transporte público e ameaça interromper todo o processo de reestruturação do transporte. Além de alegar falta de caixa, a Prefeitura de Aparecida de Goiânia argumenta que terá prejuízo de aproximadamente R$ 70 milhões em 2023 como efeito do congelamento do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), medida adotada pelo governo estadual para frear para os cidadãos o impacto das constantes altas no preço dos combustíveis.

Para justificar a judicialização, a administração aparecidense também pretexta que o projeto feriria a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) porque imporia obrigações a entes que não teriam condições financeiras e fiscais de assumi-las. O secretário de Fazenda de Aparecida, André Rosa, alega que há inconstitucionalidade na lei aprovada pela Assembleia Legislativa de Goiás (Alego) em dezembro do ano passado e sancionada pelo governador.

Outro ponto de contestação por parte do município está no fato que eles não participaram das discussões definiu os criterios no qual Aparecida de Goiânia subsidie 9,4% dos custos, Senador Canedo, que vai custear 8,2%, o Estado de Goiás e a Goiânia vão bancar, cada um, 41,2% dos subsídios. Mas tal posicionamento foi feito sem apresentar qualquer contraproposta ao projeto que moderniza e qualifica o transporte público, a prefeitura de Aparecida de Goiânia decidiu ir à justiça para não financiar o modelo que, entre outros avanços, vai reduzir o custo para os cidadãos.

Mas eles esquecem que desde junho de 2020 o judiciário decidiu que por ser direito fundamental e essencial, o transporte público coletivo não pode ser interrompido. E uma paralisação poderia provocar danos graves em diversos setores que dependem dele além do prejuízo no deslocamento das pessoas para o trabalho, atividades essenciais e manutenção da condição de dignidade durante a pandemia.

A juíza a época afirmou que o fato do Estado ter apresentado um plano emergencial para fixar condições extraordinárias para manutenção do transporte coletivo, onde propõe medidas a serem tomadas por parte do próprio Estado de Goiás, municípios da RMG e pela CMTC, leva a entender que há necessidade de complementar a receita das empresas concessionárias.

Na proposta homologada, o aporte financeiro seria realizado da seguinte forma: 17,65% por parte do Estado de Goiás, 41,18% pelo Município de Goiânia, 9,41% por Aparecida de Goiânia, 8,24% pelo município de Senador Canedo, e 23,53% por parte dos demais municípios. Em seguida o Estado de Goiás assumiu a contra-parte dos demais municípios ficando com os mesmos percentuais de Goiânia. A condição para o subsídio é de que haja queda superior a 15% do número de passageiros. Entretanto o município de Aparecida judicializou a questão e desde 2020 não vem aportando e , passando quase dois anos, não apresentou nenhuma outra solução. Tal fato desmonta a tese do desconhecimento.

Segundo dados do IBGE (2016), Aparecida de Goiânia é o município de origem do maior fluxo de pessoas que vão diariamente para Goiânia: das 176.112 pessoas que vão para capital trabalhar ou estudar, 110.378 são de Aparecida de Goiânia, o que corresponde a 62,67% do total. Senador Canedo com 13,51%, Trindade com 10,45% e Goianira com 4,59% do total também são municípios de origem com fluxo importante para Goiânia. Esses municípios são limítrofes à capital e com ela conurbados ou em processo de conurbação.

Além disto Aparecida de Goiânia representa 22% da população da Região Metropolitana de Goiânia (IBGE,2019) e 26% da demanda da RMTC (RedeMob, 2022). Então qual o motivo de questionamento da prefeitura quanto ao percentual? Seria a vontade de ter uma participação maior uma vez que mesmo com os números apresentados o município tem quase a mesma participação de Senador Canedo?

Vale ressaltar que as políticas públicas, como instrumento de atuação política que são, estão sujeitas a influências de origem ideológico-partidárias e econômicas, além de dependerem da competência e honestidade de propósitos com que são elaboradas e de estarem permanentemente submetidas ao crivo legal. Em função desses condicionantes, verifica-se no atual transporte público nacional, a existência de alguns problemas significativos que demandam a atenção dos responsáveis pelo setor para que se evite o agravamento das suas consequências.

Nele podemos destacar o entrave em relação ao descaso quanto à organização do sistema - A inexistência de um arcabouço jurídico-regulamentar adequado e/ou a omissão do setor público no acompanhamento e controle dos serviços prestados, constitui, para alguns segmentos da população, um incentivo à intervenção irregular na oferta de transporte.

Portanto, toda reflexão resume em tratar os serviços de públicos de transportes que por meio da Emenda Constitucional 90/15, tornou o transporte como um direito social. O tema foi incluído na Constituição Federal, que já previa como direitos dos cidadãos a educação; a saúde; a alimentação; o trabalho; a moradia; o lazer; a segurança; a previdência social; a proteção à maternidade e à infância; e a assistência aos desamparados.

Então da mesma forma que a educação; saúde; moradia; a segurança são em maior ou menor grau subvencionado pelo Poder Público, com sete anos de atraso os serviços de transporte estão realmente sendo encarados como serviço público essencial. Para alcançar este objetivo é importante solucionar várias questões:

Em primeiro lugar, os orçamentos dos Municípios e Estados são limitados e geralmente estão já comprometidos com os outros programas sociais tradicionalmente financiados com recursos públicos, como saúde, segurança e educação por exemplo. Além disso, esses programas sociais geralmente focam as pessoas de mais baixa renda, que podem ficar prejudicadas com o aumento da pressão sobre o orçamento geral e consequentemente podem ficar prejudicadas devido às restrições impostas a esses programas.

Outro ponto é quanto à regressividade do sistema tributário do país, em função da arrecadação se concentrar mais nos impostos indiretos. Assim, o custeio da operação do sistema de transporte utilizando recursos exclusivos do orçamento público, no modelo tributário atual, pode significar que os pobres também arcarão com o maior ônus da medida, apesar de que isso ocorre em um nível de regressividade menor do que observado no sistema atual, com financiamento direto pela tarifa cobrada dos usuários de baixa renda.

Dessa forma, a discussão sobre o custeio do transporte público, quando limitada às fontes orçamentárias de Estados e Municípios, também tem que levar em conta qual a fonte originária dos recursos. Conforme já abordado, o ideal é que haja fontes com características mais progressivas, onde as camadas de mais alta renda pagam mais e os mais pobres pagam menos, já que pelo modelo tarifário atual ocorre o inverso.

Outro princípio importante a considerar na formatação de novas fontes de arrecadação é a compensação das externalidades negativas do sistema de mobilidade. Assim, pode-se pensar na instituição de fontes que visem recursos compensatórios originários dos segmentos que hoje causam impactos sobre o desempenho e custo dos sistemas de transporte público, como por exemplo, o transporte individual.

O exemplo mais recente desta mudança de postura do Poder Público foi justamente a promulgação da Lei Complementar Estadual de Nº 169 de Goiás, que reformulou a Rede Metropolitana de Transporte Coletivo de Goiânia, e instituiu as bases para a segregação entre a tarifa técnica de remuneração e a tarifa pública cobrada dos usuários, o que levará a necessidade de complemento tarifário para financiar os serviços.

Portanto, defendo que a prefeitura de Aparecida possa refletir e perceber o transporte como um serviço público essencial e não como elemento de política eleitoral.  E assim o foco do Gestor Público tem que deixar de ser limitado na operação dos serviços (custos/ empresas privadas) e ampliado para gestão dos serviços (investimentos/ políticas sociais). Ou seja, sair do discurso raso: tarifa x caixa preta x lucro para investimento x transparência x melhoria na qualidade.

E por último vale ressaltar que o modelo de financiamento (exclusivamente pela tarifa) do Transporte Público Coletivo, adotado historicamente pela maioria dos centros urbanos brasileiros, exauriu sua capacidade de financiamento da operação do serviço, depois de já ter acumulado anos de insuficiência para investimentos em qualidade do transporte público, promovendo um encontro explosivo entre preço alto e qualidade baixa (IPEA, 2013).

Também se evidencia, segundo pesquisa feita pelo IPEA (2013) o efeito pernicioso do financiamento do transporte público baseado exclusivamente na arrecadação tarifária, principalmente pela alta regressividade no custeio do sistema em geral (mais pobres pagam mais), e em especial o peso das gratuidades existentes, em função da formação do mecanismo do subsídio cruzado interno à tarifa.

Além disso, no mesmo estudo, ficou demonstrado que o modelo impossibilita a expansão e melhoria da qualidade do serviço pela baixa capacidade de pagamento dos usuários tarifados, agravando a queda de competitividade do Transporte Público, com perda de demanda, diminuição da velocidade e perda de eficiência operacional.

Está claro ainda que o serviço de transporte público é custeado por poucos mas beneficia um universo infinitamente maior. O transporte movimenta a economia, viabiliza a produção, valoriza o patrimônio, possibilita a produção de riqueza, bens, tributos. Tudo isto muito além da função finalística de transportar pessoas, bens e serviços.

Ao ser alçado à condição de direito básico essencial à população, o Transporte Público Coletivo começa a avançar para uma nova concepção sustentável, em velocidade diretamente proporcional à consciência coletiva e à vontade política de cada grande centro brasileiro. Há líderes inspirando a vontade pública como há pressão popular exigindo dos gestores a qualidade e atitude de líderes. Mas em qualquer ordem, há um ambiente promissor para a solução do mais evidente e emergente nó da condição urbana que é a mobilidade.

É uma prática usual em países que em momentos passados passaram pelo mesmo debate por que passamos no Brasil e na RM de Goiânia. Várias cidades nos EUA e Europa já adotam medidas nesse sentido, de forma que em média, os valores arrecadados pela tarifa cobrem apenas cerca de 50% do custos dos sistemas de transporte dessas cidades.

A conclusão óbvia é que o transporte público da RMTC opera deficitário, sem condições ou perspectivas de investimentos, com perda de competitividade e degradação progressiva. A boa notícia são as perspectivas de reequilíbrio do sistema, redução tarifária, melhoria da qualidade e até o início de uma consciência política e social sobre a necessidade de se priorizar o transporte público coletivo. Tudo atrelado ao que pode ser chamado de “democratização dos custos do sistema”. Todos se beneficiam e todos contribuem.

Uma oportunidade para uma agenda de discussão consciente e altruísta, que pode viabilizar o novo modelo de sustentabilidade. O momento atual com a aprovação da Lei Complementar 169, proporcionou aos entes públicos uma oportunidade única para resolver os graves problemas estruturais que se perpetuaram ao longo do tempo, permitindo tornar o sistema de mobilidade mais justo e com possibilidades de evolução em termos de qualidade dos serviços.

Mas infelizmente Aparecida preferiu ficar presa no passado e não participar da melhoria do transporte na RMTC. Fazendo que seus moradores fiquem presos no modelo no qual os mais pobre financiam o serviço para que o não usuários possam se aproveitar das externalidades positivas do transporte público