TARIFA ZERO: DO IDEAL POLÍTICO À SUSTENTABILIDADE TÉCNICA


Miguel Angelo Pricinote Subsecretário de Políticas para Cidades e Transporte no Governo de Goiás | Especialista em Transportes Urbanos. 14 de outubro de 2025

1 INTRODUÇÃO: O DEBATE TÉCNICO NECESSÁRIO

O conceito de Tarifa Zero (TZ) no transporte público coletivo, frequentemente evocado em plataformas políticas, é inegavelmente sedutor. Promete justiça social e alívio financeiro. Contudo, o debate sobre sua implementação não pode mais ser uma promessa político-eleitoral; deve ser uma discussão técnica, pautada em dados econômicos, operacionais e sociais.

Neste artigo, argumenta-se que a busca pela igualdade (Tarifa Zero Universal) em grandes centros urbanos é fiscalmente insustentável e apresenta riscos inflacionários que podem anular seus benefícios sociais. Propõe-se, em contrapartida, um modelo de equidade através da Tarifa Zero para Quem Precisa, a única via para assegurar a sustentabilidade do sistema e maximizar o impacto social e econômico.

2 OS RISCOS OPERACIONAIS E FISCAIS DA UNIVERSALIDADE

A principal barreira da Tarifa Zero Universal reside na necessidade de substituir integralmente a receita da tarifa, o que, em sistemas de grande escala, tem o potencial de gerar um passivo fiscal e inflacionário.

2.1 A AMEAÇA DA INFLAÇÃO SISTÊMICA PELO REPASSE DE CUSTO

Quando a receita tarifária é eliminada, o custo total do transporte precisa ser transferido para o orçamento municipal, geralmente por meio de impostos ou taxas.

O risco fiscal é diretamente proporcional ao tamanho do déficit. Para grandes sistemas, o impacto pode ser significativo: um estudo realizado pela FIEMG sobre o projeto de Tarifa Zero em Belo Horizonte alertou que a compensação da perda de receita, projetada em R$ 3,1 bilhões anuais (considerando um aumento de 100% na demanda), poderia levar a um aumento da inflação em 3% no município, além da perda estimada de 55 mil empregos (FIEMG, 2025).

Esse cenário ocorre porque, se o financiamento vier de taxas sobre o faturamento de empresas (taxas regressivas), o setor produtivo tenderá a repassar o novo custo ao preço final de bens e serviços. O ganho de poder de compra do trabalhador, obtido com a isenção da tarifa, seria anulado pela inflação sistêmica em outros itens da cesta de consumo (SANTOS, 2025).

2.2 SOBRECARGA E DEGRADAÇÃO DA QUALIDADE OPERACIONAL

Além do risco fiscal, a universalidade pressiona a capacidade operacional do sistema.

A TZ provoca um aumento expressivo na demanda: levantamentos da NTU (Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos) indicam que a elevação na procura por viagens no Brasil variou entre 33% a 371% (NTU, 2024).

Sem investimentos massivos e imediatos em frota, esse aumento se traduz em superlotação e degradação do serviço. Relatórios como os do National Academies of Sciences (TRB) listam a lotação excessiva e os problemas de segurança a bordo como riscos concretos que minam a confiança pública, afastando justamente o usuário de maior poder aquisitivo que se deseja atrair (TRB, 2022). O custo de oportunidade de direcionar todo o recurso para cobrir o rombo fiscal impede o investimento na qualidade, fator crucial para a mudança modal.

2.3 BAIXA EFICÁCIA NA MUDANÇA MODAL

A evidência técnica questiona a eficácia da TZ Universal como ferramenta primária para tirar carros das ruas.

Estudos demonstram que grande parte do novo fluxo de passageiros vem de indivíduos que antes caminhavam ou usavam bicicleta, ou de pessoas que faziam menos viagens. Um Ensaio Controlado Randomizado (RCT) em Santiago (Chile) encontrou aumento de 21% no total de viagens (principalmente fora do pico), mas nenhum impacto significativo nas viagens de carro nos horários de pico (JARA-DÍAZ; TIRACHINI, 2013).

Há, ainda, o risco de impacto na saúde pública, conforme levantado por pesquisas, de que a gratuidade possa levar à redução do transporte ativo (caminhada/bicicleta) (GOLLA, 2024).

3 A EQUIDADE COMO CHAVE PARA O ALÍVIO ECONÔMICO E A SUSTENTABILIDADE

A alternativa técnica e socialmente mais responsável é focar na equidade, implementando a Tarifa Zero segmentada para quem mais precisa.

3.1 TZ SEGMENTADA COMO FERRAMENTA ANTI-INFLACIONÁRIA EFICAZ

A Tarifa Zero para grupos de baixa renda (beneficiários de programas sociais), estudantes e desempregados é a forma mais eficiente de gerar Ganho Real de Renda sem comprometer a macroeconomia.

3.2 FINANCIAMENTO POR BENEFÍCIO INDIRETO

O modelo segmentado permite que a receita faltante seja substituída por fontes mais justas e menos regressivas:

4 CONCLUSÃO

O sonho da Tarifa Zero Universal deve ser confrontado com a calculadora fiscal. A busca pela igualdade em grandes cidades carrega o alto risco de ser sabotada pelo próprio impacto fiscal inflacionário e pela degradação do serviço.

A responsabilidade técnica exige que se priorize a equidade. Concentrar a Tarifa Zero nos mais vulneráveis é a forma de garantir o alívio econômico e o ganho de renda imediato, enquanto se preserva a saúde financeira do sistema para investir na qualidade – o fator definitivo para transformar a matriz de mobilidade urbana de forma sustentável e justa. A política de mobilidade do futuro deve ser inteligente e, acima de tudo, equitativa.

REFERÊNCIAS

  1. FIEMG. Impactos econômicos decorrentes dos custos com a Tarifa Zero em Belo Horizonte. Belo Horizonte: FIEMG/SENAI, 2025.
  2. GOLLA, Marcelo Renan. Impactos da Tarifa Zero na Mobilidade Urbana. Dissertação (Mestrado em Administração Pública) – Escola de Administração de Empresas de São Paulo, Fundação Getulio Vargas, São Paulo, 2024.
  3. IPEAD/UFMG. Simulações do Ipead/UFMG mostram que Projeto Tarifa Zero anularia inflação que reduz poder de compra das famílias em BH. Belo Horizonte, 2025.
  4. JARA-DÍAZ, Sergio R.; TIRACHINI, Angel. The impact of fare-free public transport on travel behavior: evidence from a randomized controlled trial. ResearchGate, 2013.
  5. NTU (Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos). Tarifa zero aumenta número de passageiros, mostra estudo. Brasília, 2024. Disponível em: [Inserir URL da NTU]. Acesso em: 13 out. 2025.
  6. SANTOS, Vinicius dos; PASTI, André. Tarifa Zero: Possibilidades e Limites Para a Promoção de Cidadania Territorial e do Direito à Cidade e Para o Combate às Desigualdades Territoriais. Revista Eletrônica PesquisABC, Santo André, n. 37, 2025.
  7. TRB (Transportation Research Board). Fare-Free Transit Evaluation Framework. Washington, D.C.: National Academies of Sciences, Engineering, and Medicine, 2022. (TCRP Research Report 237).
  8. VOLINSKI, Alex. Advantages and Disadvantages of Fare-Free Transit Policy. National Center for Transit Research, University of South Florida, 2012.