A Liberdade na visão de Lutero e Calvino

A Liberdade na visão de Lutero e Calvino

Neste item será apresentado as principais reflexões dos reformistas Martin Lutero (1483 – 1546) e de João Calvino (1509 – 1564). Nelas será possível perceber que a questão referente ao relacionamento com Deus saí do monopólio defendido pelos clérigos da igreja e passa a ser entendido como uma busca individual. E está emancipação passa a dar aos indivíduos mais liberdade em relação a fé e mais responsabilidade em relação aos seus atos.

Para Lutero “um cristão é senhor livre sobre as coisas e não está sujeito a ninguém. Um cristão é um servo prestativo em todas as coisas e está sujeito a todos”. Essa afirmação inicial de parece ser contrastante pois apresenta o cristão como senhor e servo. Esta é a base do pensamento de Lutero sobre a liberdade do cristão.

Neste cenário podemos compreender que Lutero acreditava que o cristão, no reino humano, possui liberdade de escolha e poder sobre seu próprio destino e ao mesmo tempo era também devedor no reinado espiritual, em que nada há, por melhor ou pior que seja, que não venha a ser para meu próprio bem, por meio da fé.

A fé, para Lutero, é o princípio que torna a pessoa cristã. A partir dessa condição então o indivíduo pode desfrutar sua liberdade. A liberdade de reinar e não encontrar nada que não seja para seu próprio bem. Ou seja, o indivíduo tem fé, logo, é cristão, e somente assim pode gozar da liberdade de ser cristão. Aquilo que o cristão pratica em sua liberdade é desse modo consequência do fato dele ser cristão. Portanto, suas ações são boas.

E que não são as ações que o tornam a pessoa justa, mas sua fé que faz com que ele seja uma feitora de boas ações. A fé é imprescindivelmente anterior à ação. Consequentemente, a fé é também anterior à liberdade:

“Vemos assim que a fé é suficiente para quem é cristão, sem que necessite de obra alguma para tornar-se agradável a Deus. De onde se deduz que, se não carece mais de boa obra alguma, então certamente também já está dispensado de todos os mandamentos e leis. Se está dispensado, certamente é livre.” Da liberdade cristã. Martin Lutero, 1520.

Para Lutero, portanto, a relação entre liberdade e servidão, existe pois, apesar de o homem ser livre, justificado pela fé, este mesmo homem continua tendo que conviver com outras pessoas e que só se pode servir e amar a Deus quando se serve e ama ao próximo, uma vez que da fé fluem o amor em Deus, e do amor uma vida livre, animada e feliz, para servir desinteressadamente ao próximo.

O teólogo alemão também associou liberdade e responsabilidade, nisto, se manteve, próximo da tradição cristã, para quem o trabalho é uma forma de se escapar das ciladas do demônio. Outrora, São Bento também defendeu o trabalho como meio do homem se escapar do ócio. Dessa forma, a preocupação com o próximo, que o faz convocar os cristãos a pensarem nos seus semelhantes e a ajudá-los, decorre da consciência de sua fé e do que esta demanda.

Em outro ponto, Lutero defendeu a liberdade de consciência, com a intenção de orientar as pessoas nas suas ações diárias, para que no desenvolvimento de sua fé, e, portanto, de sua consciência, tomassem as decisões que considerassem compatíveis com o exercício dessa fé, isto é, com a vontade de Deus. Nesse sentido, ele defendeu que cada pessoa deveria agir com base na sua própria consciência, sendo responsável, neste mundo e diante de Deus, por suas decisões individuais, nisto se separando do pensamento defendido pela Igreja Católica.

Portanto, em Lutero, fica claro que a liberdade é concebida sob um aspecto religioso, fruto da compreensão bíblica. Contudo, em razão da tamanha interpenetração entre o secular e o religioso, no século XVI, esta visão sobre a liberdade não se restringiu apenas ao campo espiritual; pelo contrário, permeou toda sociedade, que influenciou o modo de vida das pessoas, em razão dos valores sociais e morais presentes em sua abordagem.

Pois ao entender que a salvação se dá somente pela fé, mediante a graça de Deus, tornando-se desnecessário qualquer outro sacrifício, qualquer tipo de intervenção humana, inclusive dos clérigos e da igreja, Lutero libertava os indivíduos e assim lhes imputavam a responsabilidade por seus atos. Ou seja, a concepção da liberdade será sempre vinculada a uma responsabilidade social.

Consequentemente o pensamento luterano em torno da formação individual da consciência e do livre desenvolvimento da religiosidade contribuiu para moldar a concepção moderna de liberdade e responsabilidade individual. Sendo nessa perspectiva, a forte crença na existência de esferas ou âmbitos pessoais de liberdade que devem estar protegidos quanto à intromissão dos poderes ou de terceiros.

Já João Calvino buscava em seus ensinamentos expressar o valor do homem diante do seu Criador, mas que, em função do distanciamento de Deus pelo pecado, tornou-se dependente da salvação em Cristo Jesus. Esta era e é a situação do homem em estado de ruptura com Deus. E a importância em relação entre o conhecimento de Deus e o conhecimento de si mesmo. E é neste conhecimento mútuo reside a liberdade humana.

Portanto a antropologia de Calvino é fundamental para que a seu entendimento quanto a liberdade se desvende. A liberdade tem início quando é assumido o compromisso, por parte do cristão, de buscar o autoconhecimento e encontrando, em si, as evidências da própria ação de Deus.

Nesta perspectiva, Calvino, traz a responsabilidade do cristão por assumir, em si, a vivência cristã e manifestar, pela sua vida em relacionamento a sua fé. Nisto, é manifesto a identidade do ser humano restaurado. Por isto, a antropologia calvinista é fortemente influenciada pela concepção nominalista, porque vê, no ser humano, potencial para expressar, pela vida, sua salvação, ainda que esta expressão não seja o elemento salvífico, mas a expressão do mesmo.

Na dimensão ética, a santidade, a justiça e os conhecimentos originais manifestam a imagem de Deus. Ou seja, nosso próximo carrega a imagem de Deus. Qualquer tipo de desprezo, manipulação, abuso, importa cometer grande violência contra a pessoa de Deus, visto que se manifesta em todo ser humano, mesmo apesar do seu estado de ruptura com Deus, de seu pecado. Há uma corresponsabilidade mútua entre os indivíduos.

Quando tratamos da soberania de Deus e a liberdade humana pode-se pensar em uma contradição, mas, na verdade, trata-se de uma aparente contradição entre duas verdades. Ou seja, a soberania de Deus e a responsabilidade do homem. Podemos dizer, então, que Deus como Rei ordena e dirige todas as coisas, mas como Juiz, todo ser humano é responsável por suas ações. Portanto que o indivíduo é um ser moral, dotado pelo próprio Deus de liberdade, que só existe na prática da responsabilidade.

A liberdade passa a ser tema fundamental em Calvino. Mas não a liberdade como eliminação de vínculos, mas como fortalecimento destes. A liberdade é dada de graça por Deus, e não de Deus. É a capacidade de negar o pecado para assumir algo que só pode ser feito quando se experimenta a libertação plena: a vontade de Deus.

Portanto para Calvino, a relação entre a Igreja e o Estado deve ser integral. Para ele, a Igreja é autônoma, devendo ser respeitada em suas decisões, sem interferências do Estado. De igual forma, o governo secular não deve sofrer interferências da Igreja. Porém, a Igreja deve ser percebida como a consciência do Estado através da colaboração mútua, da preservação mútua e do apoio mútuo.

É, necessário, portanto, entender a dicotomia entre Igreja visível e invisível que é a manifestação da liberdade. Certamente ela apresenta uma distinção conceitual que vai culminar numa distinção prática. A impossibilidade de identificação desta Igreja, que é “corpo místico”, de forma última leva a religiosidade ao nível meramente simbólico. Esta ideia de franco acesso a Deus possibilita o surgimento de uma Igreja feita de indivíduos autônomos, mas que se submetem por ato livre, e não por coação, nem pelo tolhimento da liberdade.

Ainda em relação a contribuição dos reformistas para ampliação do entendimento de liberdade individual é necessário fazer referência a obra A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo – (Max Weber, 1920). Entretanto, antes de iniciar as contribuições desta obra fundamental de Max Weber é de suma importância salientar que nenhum outro texto do intelectual alemão foi tão lido, tão discutido e tão mal compreendido.

A obra não trata de receitas de sucessos capitalistas, mas sim das origens de uma nova visão do trabalho que contribuiu para o capitalismo empresarial moderno. Portanto, se trata de um fenômeno cultural que, no longo prazo, repercutiu sobre as estruturas econômicas, através da a quebra da visão tradicional do trabalho e da atividade econômica. A disposição dos indivíduos foi revolucionada e a dedicação ao trabalho tornou-se central. Weber acredita poder identificar as origens dessa revolução no "protestantismo ascético", que associou, no trabalho, a esperança de salvação religiosa.

Nessa situação, Max Weber, passa a tematizar a questão de com quais teorias e métodos a história poderiam ser explicados e compreendidos - discussão em que seu interlocutor implícito era Karl Marx. E, por fim, ele se ocupa do problema de como se poderia levar uma vida digna e plena de sentido sob as condições da modernidade.

De um ponto de vista teórico metodológico, a "Ética protestante" de Weber dá seguimento à crítica construtiva a Marx e ao materialismo histórico, que ele já havia iniciado em seus primeiros escritos. Esse diálogo inclui uma crítica ao determinismo econômico e à compreensão teleológica da história. Para Weber, a história não se constitui de progresso e libertação, mas é marcada por tendências de desenvolvimento.

O segundo contexto mais amplo em que a "Ética protestante" se situa é político. Por volta de 1900, o capitalismo era alvo de críticas tanto da esquerda como da direita. Em consequência, o debate político e cultural também discutia a questão do endividamento. Por fim, a "Ética protestante" também pode ser lida como uma reflexão sobre os fundamentos da cultura moderna; por meio dela, Weber elabora o seu próprio colapso nervoso no contexto de sua situação familiar.

Embora fique claro o quão foi importante a “libertação” do indivíduo em relação a igreja. Neste ponto, os protestantes favoreceram o pensamento no qual os indivíduos são responsáveis por seu próprio destino.